sábado, 22 de janeiro de 2011

6 - Lusco-fusco

Na literatura sempre nos deparamos com o protagonista, ou o próprio escritor, que anda no anoitecer da cidade, caminhando entre as ruas quase vazias e as tavernas lotadas. Este ser procura os segredos que se ocultam no véu lunar, sejam aqueles dos obscuros cantos da pólis ou do observador que descobre a si mesmo na penumbra, ou no homem ébrio que capota na sargeta.

Faça a mesma experiência nas nossas terríveis metrópoles: veja se consegue atingir aquele estado de inspiração que suscita as divagações apaixonantes de um flâneur. Com todo o barulho caótico conseguirá no máximo uma enxaqueca, com sorte apenas um leve enjôo; o tédio é quase certeza.

Parece que as luzes da cidade, sejam elas materiais ou metafóricas, ofuscam todo um tipo de fruição solitária, típica do transeunte que habita nossas memórias literárias. O problema não é que a ágora mude, mas qual o tipo de reflexão que tem lugar no espaço da cidade depois destas mudanças. Ao invés de novos segredos para serem desvendados há um descortinamento de tudo. Nunca falta uma indicação, iluminação, uma placa explicando qual é o regulamento das gramíneas do jardim; para tudo há um rótulo e um catálogo.

Provavelmente devemos procurar outros campos de interesse, já que a cidade com todo seu exagero de sensações não nos deixe criar nenhum sentido. A condição de viver em sociedade assemelha-se a um fardo e não a uma experiência digna da curiosidade. Basta apenas correr para casa sem se concentrar no caminho pelas esquinas metropolitanas, nem olhar para o vazio do zênite, espelho da profundidade do homem pós-moderno.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

5 - Experiência

Sempre acreditei que a vivência conduziria a uma resolução dos problemas mais frequentes que assolavam-me durante o início das minhas indagações, na adolescência. Enganei-me, pelo menos até o presente momento vejo que as perguntas da vida não se resolvem com o tempo, mas se aprofundam de um modo mais desesperador.

Apesar de todo bom "sábio" dos livros mais vendidos alegar que a felicidade está em você, que ler um bom clássico te fará achar a verdade, toda solução não passa de engodo. No meu breve contato com o "exercício da razão pensante", a filosofia, me mostrou que ela mais ensina que há mais dúvidas para se elaborar do que questões que podem ser respondidas. E suponho que na breve experiência que eu tenho, a vida natural suscitará semelhante conclusão. Não lemos os gigantes que resolveram seus problemas, aprendemos a agonizar junto com os grandes autores, ou com nossos amigos próximos, não importa a época. Schopenhauer disse em algum trecho, qual a origem esqueço, que os grandes clássicos são os amigos que não teve na vida cotidiana.

Acredito que não há como achar estas respostas facilmente, mas podemos saber quais caminhos são mais enganadores, como a crença pia num sistema, seja ele religioso ou não. Com o tempo penso que aprendemos o modo mais pessoal de tratar estes sentimentos, como a angústia e a expectativa, mas sem nunca esgotá-los. Felizmente, pois uma vida sem questionamentos cairia num eterno tédio.

Talvez eu possa excluir destas observações feitas uma grande parte dos seres humanos deste mundo contemporâneo, que parecem cada vez mais substituírem o salto pela profundidade subjetiva pelo gosto das preocupações frívolas. Sorte que há aqueles a qual o gosto pela aventura em si mesmo ainda encontra lugar, para quais ainda vale a arte de escrever e debater a possibilidade imensa que há num devaneio ensimesmado. Aqueles que sabem que a pergunta muitas vezes é mais interessante que a resposta.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

4 - Barbarismo

Há um hábito comum em associar uma sociedade violenta com o seu baixo desenvolvimento cultural, como se a educação fosse a panaceia da vivência humana. Quiçá tenha-se acreditado em demasia nesta máxima, como na emancipação antevista pela Escola de Frankfurt, como um exemplo dos inúmeros esforços intelectuais que viam (e vêem) na sua própria área de estudo uma salvação. Mas uma harpia dissonante do século antepassado já nos diz que esta relação pode ser bem diferente.
No livro Humano, Demasiado humano I Nietzsche fala num aforismo singular a relação entre a cultura e a guerra, o de número 477: É indispensável a guerra. Nele argumenta-se que é necessário para a cultura superior a prática da guerra, para que a primeira possa renovar seu espírito. Longe de mim resumir toda a profundidade do argumento de Nietzsche, mas me permito a liberdade de comentar livremente este aforismo.
Com um exercício de reflexão simples sobre a grande civilização antiga podemos tirar algumas conclusões. Os romanos sempre se referiram aos seus adversários como Bárbaros, desprovidos de um desenvolvimento cultural, mas nunca ao excessos de violências destes povos, pois em sua maioria eram mais pacíficos que o povo de Roma. Junto com a produção cultural romana também há o orgulho bélico de suas conquistas vitoriosas sobre outros povos. O orgulho tem um papel fundamental na noção que um povo tem de si, como a expressão máxima deste orgulho é o poema épico de Virgílio, a Enéida. E como argumenta no aforismo que estes procuravam substitutos para a guerra nos raros períodos de paz, como os jogos de gladiadores e a perseguição aos cristãos.
Estes substitutos são criticados por Nietzsche: estes não são capazes de desempenhar o papel da guerra, pois são apenas sombras que não terão o mesmo efeito para a cultura e a civilização avançada, que necessita deste evento para não perder sua identidade; é a queda na barbárie que evita o barbarismo da sociedade. O que eu posso concluir sucintamente é que espero que nossos novos substitutos, como a competição esportiva de alto nível e todo tipo de jogo (incluindo os jogos virtuais que ao meu ver possuem também este papel na sociedade) criado por esta civilização possam evitar a necessidade de uma guerra. Do contrário, é melhor que a cultura decaia do que se pague o alto preço para mantê-la, já que mais vale a ausência do saber que a presença dos corpos.