sábado, 12 de fevereiro de 2011

Limitado.

Prostrado no leito, a face transpira na odiosa calmaria. Em semelhante estado se encontra algumas ideias: esqueceu-se de deitá-las fora.
-"Aonde termina o mundo e eu começo?"

O gotejar túmido do cabelo molha o roto travesseiro.
-"Quanto do mundo não sou eu próprio?"

O zunido do silêncio esporadicamente é cortado por algum chiado no horizonte.
-"Eu meço o mundo ou ele me ensina a limitar?"

Um vago gosto insignificante incomoda a boca. Uma sede que não vale o esforço de levantar.
-"Percebo algo que não seja eu mesmo?"

O clima opressor se mantêm, as pálpebras cerradas não resolvem se abrir. Há um burburinho qualquer que escorre da janela: mescla-se no chão com o suor pegajoso, com a dúvida leviana.
-"Há, efetivamente, apenas um pronome?"

sábado, 22 de janeiro de 2011

6 - Lusco-fusco

Na literatura sempre nos deparamos com o protagonista, ou o próprio escritor, que anda no anoitecer da cidade, caminhando entre as ruas quase vazias e as tavernas lotadas. Este ser procura os segredos que se ocultam no véu lunar, sejam aqueles dos obscuros cantos da pólis ou do observador que descobre a si mesmo na penumbra, ou no homem ébrio que capota na sargeta.

Faça a mesma experiência nas nossas terríveis metrópoles: veja se consegue atingir aquele estado de inspiração que suscita as divagações apaixonantes de um flâneur. Com todo o barulho caótico conseguirá no máximo uma enxaqueca, com sorte apenas um leve enjôo; o tédio é quase certeza.

Parece que as luzes da cidade, sejam elas materiais ou metafóricas, ofuscam todo um tipo de fruição solitária, típica do transeunte que habita nossas memórias literárias. O problema não é que a ágora mude, mas qual o tipo de reflexão que tem lugar no espaço da cidade depois destas mudanças. Ao invés de novos segredos para serem desvendados há um descortinamento de tudo. Nunca falta uma indicação, iluminação, uma placa explicando qual é o regulamento das gramíneas do jardim; para tudo há um rótulo e um catálogo.

Provavelmente devemos procurar outros campos de interesse, já que a cidade com todo seu exagero de sensações não nos deixe criar nenhum sentido. A condição de viver em sociedade assemelha-se a um fardo e não a uma experiência digna da curiosidade. Basta apenas correr para casa sem se concentrar no caminho pelas esquinas metropolitanas, nem olhar para o vazio do zênite, espelho da profundidade do homem pós-moderno.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

5 - Experiência

Sempre acreditei que a vivência conduziria a uma resolução dos problemas mais frequentes que assolavam-me durante o início das minhas indagações, na adolescência. Enganei-me, pelo menos até o presente momento vejo que as perguntas da vida não se resolvem com o tempo, mas se aprofundam de um modo mais desesperador.

Apesar de todo bom "sábio" dos livros mais vendidos alegar que a felicidade está em você, que ler um bom clássico te fará achar a verdade, toda solução não passa de engodo. No meu breve contato com o "exercício da razão pensante", a filosofia, me mostrou que ela mais ensina que há mais dúvidas para se elaborar do que questões que podem ser respondidas. E suponho que na breve experiência que eu tenho, a vida natural suscitará semelhante conclusão. Não lemos os gigantes que resolveram seus problemas, aprendemos a agonizar junto com os grandes autores, ou com nossos amigos próximos, não importa a época. Schopenhauer disse em algum trecho, qual a origem esqueço, que os grandes clássicos são os amigos que não teve na vida cotidiana.

Acredito que não há como achar estas respostas facilmente, mas podemos saber quais caminhos são mais enganadores, como a crença pia num sistema, seja ele religioso ou não. Com o tempo penso que aprendemos o modo mais pessoal de tratar estes sentimentos, como a angústia e a expectativa, mas sem nunca esgotá-los. Felizmente, pois uma vida sem questionamentos cairia num eterno tédio.

Talvez eu possa excluir destas observações feitas uma grande parte dos seres humanos deste mundo contemporâneo, que parecem cada vez mais substituírem o salto pela profundidade subjetiva pelo gosto das preocupações frívolas. Sorte que há aqueles a qual o gosto pela aventura em si mesmo ainda encontra lugar, para quais ainda vale a arte de escrever e debater a possibilidade imensa que há num devaneio ensimesmado. Aqueles que sabem que a pergunta muitas vezes é mais interessante que a resposta.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

4 - Barbarismo

Há um hábito comum em associar uma sociedade violenta com o seu baixo desenvolvimento cultural, como se a educação fosse a panaceia da vivência humana. Quiçá tenha-se acreditado em demasia nesta máxima, como na emancipação antevista pela Escola de Frankfurt, como um exemplo dos inúmeros esforços intelectuais que viam (e vêem) na sua própria área de estudo uma salvação. Mas uma harpia dissonante do século antepassado já nos diz que esta relação pode ser bem diferente.
No livro Humano, Demasiado humano I Nietzsche fala num aforismo singular a relação entre a cultura e a guerra, o de número 477: É indispensável a guerra. Nele argumenta-se que é necessário para a cultura superior a prática da guerra, para que a primeira possa renovar seu espírito. Longe de mim resumir toda a profundidade do argumento de Nietzsche, mas me permito a liberdade de comentar livremente este aforismo.
Com um exercício de reflexão simples sobre a grande civilização antiga podemos tirar algumas conclusões. Os romanos sempre se referiram aos seus adversários como Bárbaros, desprovidos de um desenvolvimento cultural, mas nunca ao excessos de violências destes povos, pois em sua maioria eram mais pacíficos que o povo de Roma. Junto com a produção cultural romana também há o orgulho bélico de suas conquistas vitoriosas sobre outros povos. O orgulho tem um papel fundamental na noção que um povo tem de si, como a expressão máxima deste orgulho é o poema épico de Virgílio, a Enéida. E como argumenta no aforismo que estes procuravam substitutos para a guerra nos raros períodos de paz, como os jogos de gladiadores e a perseguição aos cristãos.
Estes substitutos são criticados por Nietzsche: estes não são capazes de desempenhar o papel da guerra, pois são apenas sombras que não terão o mesmo efeito para a cultura e a civilização avançada, que necessita deste evento para não perder sua identidade; é a queda na barbárie que evita o barbarismo da sociedade. O que eu posso concluir sucintamente é que espero que nossos novos substitutos, como a competição esportiva de alto nível e todo tipo de jogo (incluindo os jogos virtuais que ao meu ver possuem também este papel na sociedade) criado por esta civilização possam evitar a necessidade de uma guerra. Do contrário, é melhor que a cultura decaia do que se pague o alto preço para mantê-la, já que mais vale a ausência do saber que a presença dos corpos.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

3 - Efígie

Hoje, ao apreciar o almoço numa companhia imprópria, a televisão, deparei com uma notícia que me incomodou, apesar de alguns anos de convivência com a humanidade. O fato inicia-se deste livro, o qual apenas folheei uma vez. Parece ter bons contos, inclusive uns dos melhores que já li, Amor de Clarice Lispector. Mas o aparente problema é com este conto: Obscenidades para uma dona-de-casa.

O jornal televisivo mostrava a indignação de pais que tiveram sua preciosa cria exposta a este conto virulento. As palavras chocavam estes protetores zelosos: como eles poderiam estudar com este tipo de código-de-conduta do canalha? Mas os indefesos filhotes estão no último ano do ensino médio, muitos a menos de um ano de serem considerados legalmente adultos. Acredito que se alguém tiver mais de treze anos completos, nenhum vocábulo chulo deste conto será novidade. Com dezessete anos a maioria será de fácil uso cotidiano, muito provavelmente na mesma escola que lhe distribuiu esta ode aos celerados. Acho muito plausível também que não esqueçamos da familiaridade destas palavras depois de envelhecermos trinta anos, o que torna difícil de entender a revolta dos pater familiae.

Toda a liberdade (como é adorável essa palavra desgastada) que adquiriu-se era para supor-se que falar de sexo num conto não seria ofensivo, mesmo para jovens. Abordar o assunto não-literalmente sempre foi um recurso belo de observar, mas este era necessário nos séculos anteriores. Sem mencionar que o conto é a forma literária que melhor se aproxima do cotidiano, que lhe permite usar as palavras "banidas" dos romances.

O que resta agora é queimar a efígie do autor, já que aprisionar os celerados teóricos não é mais viável. Enquanto os pais ensinam e os filhos aprendem a lição mais importante da sociedade saudável: a máscara.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

2 - O inédito.

Outro dia, depois de longos dias na minha rotina vigente, tomei um ônibus de uma linha que não pegava a meses, e fui encontrar amigos. no trajeto de tal ônibus me surpreendi que frescor havia naquele dia, um ar fresco que passava os meus sentidos olfativos. Enfim, um traço de inesperado apareceu naquele momento, que teria tudo para ser outro qualquer. Tão agradável que tenho pena de quem nunca sentiu isto.
Naquele breve momento de "ar puro" estava toda a novidade do mundo, da vida sempre apresentar novas coisas, mesmo que nada de grandioso ou "heróico". Junto com este acontecimento minha mente afluía pensamentos de igual frescor, um ânimo sádio, revigorante. Agora se o mundo é que estava novo, ou a minha percepção, não sei, me misturo com o meu sentir, ele não se separa do pensar, do mundo.
Alegre e motivado percebi que esta era a riqueza do enunciado, das frases. Não apenas as orações são inéditas, mas o mundo todo. Apenas copiamos do mundo essa novidade constante. Talvéz isto garanta a dignidade da vida, a fuga do tédio e da escravidão explícita. Ou seja apenas um ânimo temporário. Mas de qualquer jeito, uma realidade saudável, um "ar fresco", um inédito.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

1 - Principium individuationis

Um fato que me assusta quase toda vez quando ando as ruas é o desejo das pessoas de anularem sua individualidade. A norma vigente apenas muda depois de alguns anos, mas todos a seguem com o mesmo afinco e sem reflexão nenhuma. Será que uma pequena hesitação faz mal por parte de daqueles que aderem a essa exterioridade normalizadora chamada "moda"?

Longe de expressar alguma união com o uno impessoal, aquela "vontade" sem individualização da metafísica Schopenhaueriana, a prática apenas leva a uma aceitação sub-reptícia ambígua, do prazer de ver no outrem o eu, do modelo próprio ser aceito fora-de-si. Antes de aproveitar toda a riqueza da relação do sujeito com o seu προσόπος (a máscara do indivíduo, o seu atuar na sociedade), anulam-o com um arquétipo esperado, conhecido e previsível. A existência pode parecer fria e dolorosa com todos os suas questões, com a sua liberdade-prisão, mas parece que um comportamento estereotipado anula essas questões, retira da vida toda a sua complexidade, relega ao não pensar as questões mais ricas da existência.

Há dois termos que acho essencial para a vida: idiossincrasia e dúvida. A individualidade consiste nesta idiossincrasia expressa, a capacidade de expressar toda série de subjetivismo, seja sobre as eternas questões humanas, seja sobre a novidade da época vivente. Toda comunicação humana se passa por este fenômeno, de expressar sua opinião pessoal, a sua configuração de sentidos única. Se fossemos todos iguais, seria redundante e desnecessário qualquer tipo de comunicação.

Sem falar que a igualdade dos indivíduos seria o completo tédio. Prefiro que haja dúvidas assoladoras, questões existenciais insolúveis que o tédio; é necessário evitá-lo, odiá-lo, enquanto é evitável. O principium individuationis deve ser um princípio mesmo, o de afirmar a sua subjetividade (e originalidade) diante toda a existência.